fevereiro 11, 2019

Sacarose I

O trabalho de afinador é algo que para leigos é algo um pouco (muito) chato, metódico, monótono, e que por isso consegue atrair uma quantidade muito baixa de espectadores que consegue passar a barreira dos 15 minutos de observação concentrada.
Admito que nem todos possam ser afinadores, não por causa do conhecimento técnico que poderá ser necessário (porque aprender toda a gente consegue) mas porque de facto é um trabalho que necessita de uma capacidade de concentração fora do comum. Para ser comparável, imaginem que estão numa sala com vários bebés que se movimentam entre si e que choram todos, ininterruptamente, ao mesmo tempo, e durante duas horas e meia. Afinar um piano é como se tivessem de identificar, através do choro (audição) onde é que está o vosso bebé a todo o instante, tendo vocês uma venda nos olhos. Espero que tenha sido perceptível do quão complicado é. Se de facto não entenderam o que escrevi atrás, então é porque consegui descrever na perfeição o grau de complexidade do meu trabalho. Missão cumprida.
E o interessante desta afinação está aqui: os meus dois espectadores que acompanharam todo o processo moroso e técnico de afinar um piano eram bastante jovens (diga-se adolescentes) e demonstraram uma tal curiosidade que eu, por personalidade, não poderia deixar passar uma oportunidade destas. 
Inicialmente deixei-os completamente à vontade para me pararem e fazerem perguntas. Fiz algumas perguntas-teste para perceber em que pé é que eles estavam musicalmente e logo de seguida seguimos viagem. Tive um prazer enorme durante a afinação porque foi quase como uma Masterclass visto que a cada xis tempo parava para os situar e para lhes explicar alguns conceitos que estavam por detrás do que eu estava a fazer. O ar de entusiasmados e de quem estava a perceber era visível nos seus olhos que só isso já valeu a pena realizar aquela afinação.Na vida, e enquanto o nosso carácter ainda está a ser formado há coisas que nos podem perfeitamente marcar positivamente. Especialmente quando percebemos que existe alguém adulto que não se importa de investir em nós, que não se importa de tirar tempo da sua agenda de adulto e dedicar alguns minutos de máxima atenção a nós. E na maior parte das vezes, o que guardamos quando isto acontece não é aquilo que nos disseram nem as perguntas que fizémos mas sim a sensação que vivemos por perceber que alguém nos estava a ver e que decidiu, ainda que por breves momentos, ser nosso mentor e passar altruisticamente o seu conhecimento. E isto, meus amigos, é trazer e partilhar vida. Ser afinador tem-me permitido ter muitos momentos destes, seja com jovens seja com adultos seja com idosos, com os quais deixo de ser o afinador para passar a ser o amigo Ismael.
O piano em questão não era afinado há mais de 8 anos e portanto desta vez apenas fiz um pitch raise. Daqui a duas semanas volto para realizar a derradeira afinação e ver como é que afinal um Steinway vertical se comporta e se resiste ao teste do tempo. No meio disto tudo, estarão lá à minha espera os meus super assistentes de servido, atentos como sempre, preparados para tudo.


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