janeiro 05, 2021

Os Preciosos

Lembro-me pouco da afinação em si, e praticamente não tenho memória do estado em que encontrei o piano.
Lembro-me sim do motivo que me fez ir àquela casa. O cliente que me contactou, em conjunto com a família de idade mais jovem, queria oferecer uma prenda especial naquele Natal à vóvó. Nada mais nada menos do que um concerto de Natal com as suas músicas favoritas.
Achei a ideia genial, e apesar do piano não ser de todo um elemento que fosse contribui em grande monta para o espetáculo, dei o meu melhor porque a intenção daquela família era muito bonita.
Pode parecer uma prenda com um significado qb visto que é alto que não é palpável. Mas por outro lado, é um óptimo aquecedor de corações sabermos que os que nos amam tiraram tempo da vida deles para nos preparar algo que fosse do nosso agrado e que nos permitisse viver um momento especial e guardar esse mesmo momento na nossa memória. Sabe bem, sabe a amor.
Enquanto estamos vivos temos e devemos aproveitar o facto de podermos honrar com a nossa presença, carinho e atenção focada os nossos familiares. Hoje mais do que nunca, esta presença não está garantida, portanto enquanto a podemos agarrar e abraçar, pois faça-mo-lo.

Imagino o sereno sorriso no olhar da vovó ao ouvir e ver os filhos e netos numa orquestra caseira, a animar o serão da noite do dia 24 de Dezembro.

Que bonito.

fevereiro 11, 2019

Sereno Regresso I

Sempre gostei do campo e da Natureza. Afinal, nasci em pleno Ribatejo, a uns 20 killometros da magnífica e sempre portuguesa Lezíria (e a propósito disso, ainda hei-de ter um Traje Ribatejano). Quando era miúdo carregava muito nos érres e tinha outras características fonéticas de quem nasceu e viveu no centro de Portugal.

Esta afinação foi marcante por dois grandes motivos.
O primeiro, porque o piano apenas tinha cinco oitavas e por isso leva o prémio para o piano vertical mais pequeno que alguma vez vi e afinei. Tecnicamente estava em muito mau estado, a máquina tinha já muitas insuficiências nas peças. O que é compreensível, considerando que o piano tem no mínimo uns 100 anos de idade. Uma relíquia, digamos. O trabalho que faço como afinador deve estar adaptado às condições que encontramos, porque não podemos afinar todos os pianos da mesma forma nem muito menos esperar os mesmos resultados em todos os pianos que existem (aconselho-vos a estudar um pouco a ciência por detrás do conceito Gestão de Expectativas). Não faço ideia sobre as décadas que passaram desde a última vez que o piano foi afinado, mas quando olhei para as cordas pensei imediatamente “...que Deus nosso Senhor vos livre e guarde de partir enquanto eu cá estiver!”. As cordas partem-se. É normal. E não há problema nenhum nisso quando o piano está em boas condições - o que claramente não era o caso.
Com todas as ferramentas e conhecimento que tinha, e sabendo que se esticassse as cordas para além da sua capacidade máxima actual de tensão, que as partiria a todas. E com isso em mente, decidi afinar o piano a 433 Hertz. Um piano das profundezas dirão vocês. Mas como o temperamento é algo virtualmente livre, considero que a afinar naquela frequência foi uma excentricidade.

O objectivo foi conseguido e o piano ficou mais ou menos equilibrado. Neste caso, era impossível aplicar uma afinação padrão, fazer um pitch raise inicial, e depois disso voltar a afinar para estabilizar. Era impraticável. E como o piano estava completamente desafinado (algumas notas estavam cinco tons abaixo!!!!!!), afiná-lo a uma frequência mais baixa mas mais produtiva, foi o mais certo a fazer. E os resultados foram bastante satisfatórios.

O segundo motivo está na segunda parte do texto.

Sacarose I

O trabalho de afinador é algo que para leigos é algo um pouco (muito) chato, metódico, monótono, e que por isso consegue atrair uma quantidade muito baixa de espectadores que consegue passar a barreira dos 15 minutos de observação concentrada.
Admito que nem todos possam ser afinadores, não por causa do conhecimento técnico que poderá ser necessário (porque aprender toda a gente consegue) mas porque de facto é um trabalho que necessita de uma capacidade de concentração fora do comum. Para ser comparável, imaginem que estão numa sala com vários bebés que se movimentam entre si e que choram todos, ininterruptamente, ao mesmo tempo, e durante duas horas e meia. Afinar um piano é como se tivessem de identificar, através do choro (audição) onde é que está o vosso bebé a todo o instante, tendo vocês uma venda nos olhos. Espero que tenha sido perceptível do quão complicado é. Se de facto não entenderam o que escrevi atrás, então é porque consegui descrever na perfeição o grau de complexidade do meu trabalho. Missão cumprida.
E o interessante desta afinação está aqui: os meus dois espectadores que acompanharam todo o processo moroso e técnico de afinar um piano eram bastante jovens (diga-se adolescentes) e demonstraram uma tal curiosidade que eu, por personalidade, não poderia deixar passar uma oportunidade destas. 
Inicialmente deixei-os completamente à vontade para me pararem e fazerem perguntas. Fiz algumas perguntas-teste para perceber em que pé é que eles estavam musicalmente e logo de seguida seguimos viagem. Tive um prazer enorme durante a afinação porque foi quase como uma Masterclass visto que a cada xis tempo parava para os situar e para lhes explicar alguns conceitos que estavam por detrás do que eu estava a fazer. O ar de entusiasmados e de quem estava a perceber era visível nos seus olhos que só isso já valeu a pena realizar aquela afinação.Na vida, e enquanto o nosso carácter ainda está a ser formado há coisas que nos podem perfeitamente marcar positivamente. Especialmente quando percebemos que existe alguém adulto que não se importa de investir em nós, que não se importa de tirar tempo da sua agenda de adulto e dedicar alguns minutos de máxima atenção a nós. E na maior parte das vezes, o que guardamos quando isto acontece não é aquilo que nos disseram nem as perguntas que fizémos mas sim a sensação que vivemos por perceber que alguém nos estava a ver e que decidiu, ainda que por breves momentos, ser nosso mentor e passar altruisticamente o seu conhecimento. E isto, meus amigos, é trazer e partilhar vida. Ser afinador tem-me permitido ter muitos momentos destes, seja com jovens seja com adultos seja com idosos, com os quais deixo de ser o afinador para passar a ser o amigo Ismael.
O piano em questão não era afinado há mais de 8 anos e portanto desta vez apenas fiz um pitch raise. Daqui a duas semanas volto para realizar a derradeira afinação e ver como é que afinal um Steinway vertical se comporta e se resiste ao teste do tempo. No meio disto tudo, estarão lá à minha espera os meus super assistentes de servido, atentos como sempre, preparados para tudo.


x