outubro 28, 2014

Deck Nine II


O primeiro piano há muito que pedia por socorro.
Vendo bem, as condições de um piano de cruzeiro não são nada abonatórias para a estabilidade temporal do instrumento. Há vento, há humidade, há mar agitado, há pouca manutenção mas há uso diário. A conjugação perfeita para uma potencial desgraça. Estava bom tempo e a afinação correu bastante bem, apesar de eu saber que em breve, talvez no próximo porto, já se notariam algumas diferenças de afinação. Previsível.
Entretanto parei para almoçar e como não queria perder muito tempo a sair do porto e procurar uma casa para almoçar, decidi perguntar se havia algum restaurante ou bar dentro do barco. Foi-me dito que sim, mas que tinha de subir até ao "deck nine". Subi pelo elevador (sim, elevador) e saí no terraço do barco onde me alimentei com uma vista muito bonita e com uma perspectiva muito diferente de Leça e de Matosinhos.

Entretanto voltei para o segundo piano e aconteceu algo sobre o qual já tinha lido e presenciado mas em pequena escala. Para afinar um piano de cauda abre-se o tampo para haver dispersão livre de som. Pessoalmente também tiro a tampa que protege as teclas para me dar mais espaço de trabalho. E foi aqui que vi algo lindo e impressionante. Cada afinador mundial que tinha tocado naquele piano tinha deixado a sua marca. Cada um deles escreveu quatro coisas básicas numa tecla escolhida por eles: nome, data, local e frequência de afinação. E foi impressionante perceber que aquele cruzeiro já tinha estado em todo o mundo, desde a Cidade do Cabo a Xangai, Sidney, Chennai, Buenos Aires, Liverpool, e estes são só aqueles que me consigo lembrar. Soube muito bem escrever também a minha tecla e deixar ali um bocadinho de alma portuguesa. Senti que fazia parte de um grupo restrito de pessoas, as quais só elas sabiam o que estava escrito naquelas teclas fora do campo de visão dos demais humanos. A hora acabou por avançar e eu acabei os dois pianos a tempo, testei determinadas frequências para confirmar que estava tudo bem e decidi vir para casa, para o sossego, com vontade e gosto em saber sempre onde ponho os meus pés: em terra firme.

Ismael Macaia
September 2014
440Hz
Porto


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