outubro 28, 2014

Deck Nine I

A segunda grande época de afinações já tinha começado quando recebi um telefonema com o interlocutor a falar comigo como se eu já soubesse do que se tratava. Foi um início de chamada deveras estranho porque quem ouvisse os primeiros 30 segundos de conversa (eu incluído) nunca na vida diria que se estava a falar de afinação e de pianos.
Até que eu, na minha inocência e boa vontade, achei por bem informar à pessoa de que muito provavelmente tinha ligado para o número errado e que ali não se faziam peritagens em barcos, muito menos naquele que iria então chegar dali a dois dias, ao que a pessoa me responde "...mas o senhor não é afinador de pianos?". Ao ouvir isto pareceu-me que tinha levado com um toro de madeira na cara, daqueles atirados bem de longe e que vão fazendo cada vez mais barulho à medida que se aproximam de nós.
Aquela pergunta captou logo a minha completa atenção e consegui perceber que afinal o que me estavam a pedir era a afinação de três pianos que estavam dentro de um cruzeiro que iria chegar ao porto de Leixões dois dias a seguir.
"Afinar num barco?claro que sim, mas ainda vou ter de descobrir como é que se afina três pianos desconhecidos em 7 horas", pensei rapidamente. Na teoria, as sete horas são suficientes para se afinar três pianos. Mas quando não se sabe ao que se vai, quando o tempo está cronometrado, todo o tempo disponível tendencialmente parece pouco e insuficiente pois há que contar com imprevistos e tempo para os resolver. Posto isto, decidi comprometer-me apenas com dois pianos para ter margem de garantir uma afinação de qualidade de acordo com os meus padrões e ter tempo também de consertar alguma coisa que fosse necessária.


No dia combinado, às 9h00 da manhã estava a entrar pela primeira vez na vida no porto de Leixões, pronto para afinar no cruzeiro enorme que tinha chegado. A primeira impressão que tive quando entrei no barco foi que de facto os barcos têm poucas janelas e que há um sem número de corredores sem luz natural e que por isso estão a milhas do céu aberto ou de uma simples janela. Eu nunca me considerei uma pessoa claustrofóbica, até porque em pequeno, quando brincava às escondidas com os meus irmãos, nunca vi problema algum em me esconder dentro de armários, guarda-fatos, baús e demais compartimentos. Mas estar dentro daquele barco fez-me sentir algo que nunca tinha associado a barcos: ansiedade e vontade de estar num sítio com janela ou então com acesso facílimo ao mar. Imaginei imediatamente o que seria ficar preso num daqueles corredores enquanto o barco se afundava lentamente e a água nos vai subindo cada vez mais, confirmando aquilo que desde o início temíamos. Sinistro. Mas o barco estava ancorado e do sítio onde eu estava a afinar, caso fosse necessário saltaria para a água de muito bom grado. Ainda eram uns 10 metros mas na hora do aperto esses dez metros seriam nada mais que uns meros centímetros.


(continua)

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